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Entrelaçados

Nadir Batista

Por Vinicius França

Nadir Batista, 83 anos

Comerciante Aposentada

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Quantas portas a vida fecha para quem não aprende a ler nem a escrever? Aos 83 anos, a dona Nadir Batista tem plena consciência das oportunidades que deixou passar por ter que interromper seus estudos bastante nova. Comerciante aposentada, ela começou a trabalhar por volta dos 12 anos de idade, após o abandono do seu pai. “Eu estudava, ainda fiz até a segunda série. Aí eu vi o problema da minha mãe, pedia as coisas ao meu pai e ele dizia que não tinha filho”, ela conta. Foi nesse cenário de dificuldade e desalento que Nadir e suas cinco irmãs se viram forçadas a trocar os estudos pelo trabalho. Quase cinquenta anos depois, pelo menos uma delas entraria na triste estatística de idosos que tiveram que parar os seus estudos por conta de várias adversidades da vida.

 

Nadir é uma dos quase 30 milhões de idosos vivendo no Brasil, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Assim como todos esses, ela tem os direitos específicos à sua idade resguardados pelo Estatuto do Idoso, criado em 2003, que considera idosas todas as pessoas acima de 60 anos. Nas páginas do documento, os artigos 20 e 21 garantem que a educação deve ser parte do exercício da cidadania na terceira idade, e que o poder público “criará oportunidades de acesso do idoso à educação, adequando currículos, metodologias e material didático aos programas educacionais a eles destinados”.

 

Mesmo com as garantias previstas em lei, a taxa de analfabetismo entre pessoas acima de 60 anos é uma realidade. Ainda segundo o IBGE, o índice de idosos que não sabem nem ler nem escrever chega a 20,4%. Esse número varia para mais ou para menos quando é feito um recorte de raça: entre os brancos, a porcentagem é de 11,7%. Já entre os pretos e pardos, sobe para 30,7%. No Ceará, a realidade não é nada diferente, e sim pior:  no estado, o índice de analfabetismo na terceira idade é maior do que a média nacional, chegando ao elevadíssimo número de 40%.

 

Hoje, Nadir, que sequer chegou a concluir o ensino básico, luta para sair dessas estatísticas. Moradora do bairro Parquelândia, ela ficou sabendo por meio de uma de suas filhas que uma escola perto de sua casa oferecia um curso de alfabetização direcionado a jovens e adultos. Era a oportunidade certa para que ela fosse em busca de um sonho que passou um longo tempo guardado por ter que ajudar sua mãe e suas irmãs. Muitos anos antes disso, porém, Nadir já tinha sentido vontade de retomar os estudos, mas dessa vez foi seu próprio marido que a recriminou. “Ele dizia: ‘não, não precisa estudar, não. O seu tempo já passou, agora a gente tem mais é que trabalhar", relata. Restou apenas criar seus oito filhos e trabalhar no seu comércio, a mercearia Padre Cícero, que logo virou o bar Besouro Verde, que já existe há mais de 60 anos e hoje é administrado por um dos filhos de Nadir.

 

A metodologia que costuma ser utilizada para alfabetizar idosos é a da Educação para Jovens e Adultos (EJA). Além das especificidades em relação ao ensino para pessoas mais velhas que devem ser levadas em conta no exercício da EJA, também se sobressaem os fatores socioculturais. Afinal, por que essas pessoas pararam de estudar? Para a professora e psicopedagoga Elaine Pereira, existem alguns motivos mais recorrentes em relação às mulheres: “muitas precisavam cuidar de filho muito cedo, foram mães ainda na adolescência, elas tiveram que ser donas de casa muito cedo”, cita. O machismo, que tinha uma força ainda maior na época em que muitas das idosas ainda eram jovens, também é um fator preponderante para a interrupção o processo de escolarização. “Muitas já são viúvas, então se sentiram ‘libertas’ de alguma forma. Outras [retornam os estudos] até mesmo pela mudança dos tempos, a própria mentalidade da sociedade foi mudando, os filhos cresceram, então elas pensam: ‘agora é o meu tempo, eu quero aproveitar’”, explica.

 

Para quem tem mais idade, voltar a aprender pode ser uma tarefa que demande mais tempo, mas que não é escassa de benefícios. Aprender a ler e a escrever ajuda qualquer um a compreender o mundo ao seu redor e a reconhecer seus direitos, seus deveres e seu lugar no mundo. Dentro da sala de aula, Elaine já consegue reconhecer e apontar as diferenças na vida de um idoso que busca retomar ou ampliar sua formação. “Eles ficam mais espontâneos, conseguem se colocar em situações que antes não conseguiriam. Eu vejo minhas alunas: ‘ah, eu vou no posto de saúde e se não tiver atendimento, eu sei que eu tenho o direito ao atendimento. Antes, elas simplesmente voltariam para casa’”, conta.

Uma das maiores peculiaridades no ensino do EJA é que grande parte dos idosos que buscam o ensino o fazem por conta própria, porque sentem que houve uma defasagem ao longo de suas vidas por conta da formação incompleta. Nadir sabe muito bem reconhecer o tamanho do atraso por ter cedido ao marido quando ele a proibiu de voltar a estudar por volta dos 40 anos de idade. Hoje, mais de quarenta anos depois e já viúva, ela disse que, se ele tentasse recriminá-la hoje em dia, ela não obedeceria de jeito nenhum. “No tempo que eu me casei, as mulheres só faziam o que os homens queriam, mas se fosse agora, eu teria dito ‘vou estudar’ e teria ido mesmo”, ela diz, com bastante firmeza. O pensamento é bastante moderno, mas se você perguntar a Nadir qual a primeira coisa que ela vai fazer depois de se alfabetizar, ela faz questão de relembrar um costume antigo: “eu quero aprender pra ler uma carta e escrever outra. Aí quando chegar nesse ponto, se eu ainda for viva, eu continuo pra frente”, finaliza.

Maria de Jesus, 72 anos

Lavadeira e engomadeira

Por Rejane Marinho

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Maria cheia de graça, de luta, trabalhadora e andante de Fortaleza. É  assim a vida de Maria de Jesus, uma entre tantas Marias que na terceira idade ainda precisam trabalhar em Fortaleza. Ela faz parte da maioria dos idosos cearenses que é constituída por mulheres (55,2% ou 644 mil), mesmo porque, entre elas, a esperança de vida ao nascer é estimada em 77,2 anos, enquanto a esperança de vida masculina é oito anos menor (69,2 anos) dados de 2013 do IBGE.


O trabalho é pesado para Maria, cada dia um novo bairro, uma nova casa, Ela é lavadeira e engomadeira nas residências da cidade passa necessidade para sobreviver. Por conta disso todo dia às cinco e meia ela pega mais um ônibus lotado para cumprir outro dia de serviço. “Eu me maltrato, eu entro nos ônibus lotados e me machuco, mas eu preciso”. 


Ela é idosa com mais de setenta anos e pelas condições da sua vida não estudou, por isso ela faz parte do número de pessoas adultas analfabetas. O nível de analfabetismo ainda é muito expressivo na terceira idade, especialmente nas áreas rurais. No Ceará a taxa de analfabetismo em 2013, mesmo com declínio nos números, era  de 46,8% de homens e 40,4% de mulheres que não sabem ler e nem escrever um pequeno bilhete. A PNAD revela ainda uma migração do analfabetismo adulto da zona urbana para a zona rural do estado, pois a fração rural do analfabetismo na terceira idade cresceu, de 28,8% para 41,8% de idosos.


Apesar da baixa escolaridade, cerca de 64% dos idosos do estado são pessoas de referência das famílias, ou seja, os maiores responsáveis pelas famílias ou assim são considerados pelos seus demais membros, segundo conceituação do IBGE. É o caso de Dona Jesus, como é costumeiramente chamada, ela começou a trabalhar com nove anos, depois do falecimento do pai e como tantos moradores do interior, foi no roçado em Granja - Camocim que começou sua trajetória de trabalho. Junto com a mãe na beira do rio, entre as pedras lavava roupa e fazia chapéus para sustentar a família.


Atualmente pensionista, por conta de empréstimos feitos para comprar um terreno, continua na luta para garantir a sua sobrevivência e de seus familiares. Ocupando a lugar de responsável pela família. Dona de uma grande fé, por trás das portas feitas com tangas de rede, sempre confiante em Deus, ela afirma que ainda irá terminar a sua casa. Maria também foi esposa e agora mãe e avó, mas seus filhos atualmente não possuem meios para auxiliar ou cuidar dela. Fazem companhia quando necessita ir no médico ou resolver algo sério. Ela é hipertensa e muitas vezes passa mal por conta do esforço feito ao engomar as roupas de suas patroas. E nesses momentos os filhos que moram perto são seu socorro, seu apoio e seu alívio.


No universo da terceira idade cearense, Maria faz parte do segundo conjunto mais numeroso de participação dos rendimentos, os pensionistas (12,9%) era a segunda fração mais significativa em 2013 em comparação com 4.9% de 2009. Tais números sinalizam que no Estado Ceará, quase a totalidade das pessoas com 60 anos ou mais tinha garantia de alguma renda  visto que apenas 7.2% eram de idosos sem rendimentos.


 E com isso Maria é destaque na família, mesmo com um baixo rendimento mensal da pensão e, por conta disso, o trabalho para complementar a renda. Ela afirma que abaixo de Deus são seus filhos a única coisa que ela tem. Ela relembra as dificuldades vividas quando não tinha auxílio do esposo, muitas vezes trabalhando em lugares ruins para trazer alimento para seus filhos e pagar o aluguel. Durante sete anos enquanto o marido morava com outra mulher, sozinha, ela foi o porto seguro de seus filhos. Contudo, após o falecimento do esposo conseguiu o direito a pensão, Maria ainda não é aposentada.
Para implementar a sua renda mensal ela com mais de setenta anos lava e engoma roupas nas casas ricas de Fortaleza para assim realizar todos os seus projetos e continuar vivendo.

 

Consciente da vida que tem, a idosa repete que anda cansada, pois começou a trabalhar muito cedo. Além do sofrimento encarado toda manhã, ainda vem certas palavras que aumentam o peso do dia a dia. Algumas pessoas alegam que dona Maria não tem necessidade de trabalhar, uma vez que ela mora sozinha e já é uma senhora de idade. A falta de conhecimento da sua vida gera tais comentários. Por outro lado, sempre no caminho para pegar o ônibus do dia os vizinhos a enchem com palavras de admiração por conta da sua disposição e coragem.


Apesar dessa coragem, ela ainda faz parte do grupo de trabalhadores informais do Estado. Mesmo com o envelhecimento populacional e um perfil mais velho para o mercado de trabalho, segundo PEA do Ceará, ainda não existe ações que possibilitem oportunidades de empregos formais e adaptados para essa parcela de população.


No Estado do Ceará, números da PNAD estimam que a força de trabalho da terceira idade (PEA com 60 anos ou mais) totalizara 370 mil pessoas, em 2013, o equivalente a 8,8% da PEA estadual (4.215 mil), sinalizando que uma em cada onze pessoas economicamente ativas tinha 60 anos ou mais. Por sexo, a contribuição  masculina de 60 anos ou mais, na constituição da força de trabalho masculina do Estado, cresceu de 8,5%, em 2009, para 9,9%, em 2013, enquanto a fração feminina da mesma corte oscilou de 7,2% para 7,3%.


Grande parte dos idosos que trabalham não teria necessidade própria, mas destina o que ganha para sustentar a família. Cerca de 10 milhões de pessoas dependem da renda dos aposentados para viver, segundo uma pesquisa da LCA Consultores. Em 2017, o percentual de lares em que 75% da renda ou mais vem de indivíduos com mais de 60 anos cresceu 12%, somando 5,7 milhões. Contudo, ainda não temos um incentivo por conta das empresas em abrir vaga para essa parte da população. Assim muitos idosos viram empreendedores ou entram no mercado informal de trabalho como a Maria.


Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas seja por falta de dinheiro ou mesmo no trabalho Maria cresce na fé de terminar sua casa e auxiliar seus filhos. Antes a casa era de Taipa e hoje a casa já levantada falta as portas e alguns detalhes para termina-la. Ela lamenta que os filhos também não puderam estudar, triste decisão de uma mulher que não tinha meios para alimentar os filhos, pagar as contas e garantir os estudos.


Entre os inúmeros pensamentos que são seus companheiros durante as pequenas viagens que faz até o serviço, um sempre se repete. Maria pensa em parar de trabalhar por conta da sua saúde debilitada, mas o sonho de terminar a sua casa e de garantir mais conforto para si e a família é mais forte. Já deu um passo nesse sonho quando teve sua casa de taipa destruída pela chuva e como a mesma fala, levantou sua casa de tijolos. Maria agradecida pelos filhos e pelas patroas que tanto prezam por serviços, segue a sua dura batalha cheia de graça como tantas Marias de Jesus.

Maria de Jesus
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